quinta-feira, 18 de julho de 2019

Vulcão Santa María E Cataratas De La Igualdad


Ao longo de 82 artigos aqui expostos até hoje sobre vários lugares, manter uma narrativa realmente catalogadora, neutra e isenta foi algo que sempre se pretendeu. Descrever uma trilha segundo a cronologia da nossa própria visita é apenas um jeito de informar ou prevenir quem tenha interesse, para aquilo que de forma idêntica ou parecida encontrará. Excessos acontecem. Se por um lado pecamos em apresentar certas perspectivas pessoais para reforçar o aspecto emocionante de cada atrativo, por outro, tentamos não cair no fosso da banalidade, como relatos de trilha onde se detalha até o que cada um comeu, ou os assuntos triviais discutidos durante o percurso. A despeito da liberdade de quem escreve, seria de pouca utilidade para quem lê. Entretanto, falar pela 1ª vez de algo tão distante do leste do Paraná – foco deste blog – requer um pouco mais de licença à impessoalidade. Será, pois, uma exceção.


Numa noite de abril – primavera no hemisfério norte – ouvia a chuva bater na janela do quarto de hotel onde estava. Com uma previsão do tempo incerta, não seria estranha uma temperatura negativa na manhã seguinte, no cume que pretendia havia anos. Era o centro, a parte principal da viagem, e o clima poderia simplesmente estragar tudo. Parecia arriscado acordar cedo demais e ir esperar um ônibus antes do sol nascer, uma vez que mal conhecia Quetzaltenango; porém hoje até creio que seja mais segura que Curitiba. O chão molhado e um 'céu de chumbo' faziam lembrar alguns insucessos que já tivera. O ônibus para o bairro Llanos Del Pinal sai do Parque El Calvário, na 8ª Calle; passa por uma praça que é como um grande terminal, e percorre boa distância em direção à zona sul, onde está a área montanhosa. A passagem, como na maioria dos transportes da Guatemala, é muito barata.


Quetzaltenango é a 2ª maior cidade do país, tendo uma população do tamanho de Presidente Prudente – SP. O Vulcão Santa María (3772m) é o 4º mais alto da Guatemala, atrás do Tajumulco (4220m), Tacaná (4060m) e Acatenango (3976m). Não são montanhas brancas com neve, ao estilo "sorvetão", e sim uma recortada cordilheira verde que pertence ao círculo de fogo do pacífico, e constitui a porção mais elevada da América Central. Resultado de uma antiga erupção, a parte do Santa María oposta à trilha sofreu um enorme desmoronamento, e anos depois, uma nova cratera surgiu no lado destruído, passando a ser chamada Vulcão Santiaguito. Ele é mais baixo, porém fortemente ativo. O ponto final do ônibus que leva à base fica apenas a uma quadra das últimas casas do bairro – como um "Borda Do Campo" em relação ao Morro Anhangava.


Apesar de não ser tão turístico como os que circundam a capital, o Santa María é bem frequentado por pessoas da região; e foi mais fácil conseguir informações sobre ele com populares do que no escritório de turismo no centro da cidade. A moça que me atendeu dissera não saber como chegar à trilha de forma independente, então lhe prometi descrever posteriormente minha ida, caso desse tudo certo. Em locais assim, de qualquer região do mundo, a tendência é que enrolem o turista pra que contrate passeios pagos; e talvez eu não tivesse dado a ela o benefício da dúvida se não fosse tão bonita.


Na estradinha que precede a trilha do vulcão, tinha pela frente 4km de caminhada, com um desnível de mais de 1200m, o mesmo do Monte Garuva, por exemplo. O trajeto já iniciava nos 2500m de altitude, diferente de algumas montanhas da região onde o ganho é maior. Minha experiência acima dos 3000m, (anos antes em outro país) tinha sido horrível; representando mais um problema que poderia me fazer desistir na metade. Havia alguns dias que tomava vitamina b, recomendada para suportar grandes altitudes, e foi uma decisão muito acertada. É barata e funciona.


Chegando no último campo antes de adentrar a floresta, a continuação é pelo lado direito, e por toda a extensão, a trilha é bem aberta, sem grandes obstáculos. Quando senti as primeiras gotas de uma garoa, lembrei de certa notícia sobre três mortos por hipotermia no Vulcão Acatenango, um tempo atrás. Mas ela não continuou; e outro ânimo tive quando vi mais gente subindo a trilha. A floresta é em maior parte de pinheiros altos, e o solo alterna entre trechos de pedra e de terra úmida. Se chegasse a qualquer outro cume cheio de gente e sem nenhuma vista, por causa das nuvens, sentiria até arrependimento, mas não lá. Concluíra com êxito a subida, depois de tanto tempo de expectativa, estava no topo do Santa María. Somente ali senti uma pequena diferença ao respirar, por causa da altitude.


Era um lugar bem espaçoso, entre pedras grandes; e havia distintos grupos de trilheiros. Um deles fazia orações numa das várias línguas indígenas do país; e embora fossem cristãos, me surpreendeu que a forma do seu louvor remetia às mesmas tradições e idiossincrasias de um tempo remoto, onde adoravam outros deuses. A riqueza e a variedade da cultura guatemalteca não ficam devendo em nada para países muito maiores. Num grupo de americanos, pensando que eu fosse nativo, um deles perguntou-me em espanhol se eu tinha esperança de que as nuvens se abrissem um pouco, para que pudéssemos ver qualquer coisa. Respondi que sim, pois para um dos lados estava clareando bastante. Foi meio profético, porque em poucos minutos aconteceu o que mais esperávamos. Na direção da cidade e também do Vulcão Santo Tomás, o véu branco começou a se abrir e pudemos ver, senão todo o desejado, um bom espaço de paisagens bonitas.


CATARATAS DE LA IGUALDAD

Ter um dia de descanso para cada dia de trilha, numa viagem internacional, é um luxo que nem todos podem se dar. Ter encaixado em tão pouco tempo no roteiro o conhecido Vulcão Pacaya e o Lago Atitlán já havia sido mentalmente cansativo. O próximo passo era ir ao encontro da cachoeira mais alta da América Central (embora haja controvérsia com o Salto Chilascó). Como ao lado dela às vezes se formam outros fluxos, e também existe outra queda mais abaixo, o local é chamado no plural, de Cataratas De La Igualtad. No cansaço do dia anterior, não pude sair tão cedo, e fiz uma má economia indo a pé ao ponto de ônibus para San Marcos, quando na verdade um táxi teria sido providencial. Transporte por aplicativo, até aquele momento, só existia na Cidade Da Guatemala.


Os ônibus lá são um capítulo à parte. Modelos escolares americanos, com muitos anos de uso, que em algumas linhas (não todas) são conduzidos na velocidade máxima, com estrondosas buzinas de caminhão, fazem manobras bruscas para pegarem passageiros vistos 'em cima da hora', e levam gratuitamente muitos vendedores ambulantes. Estes por sua vez anunciam toda sorte de produtos até a exaustão da voz, pois não competem só com o som ambiente, mas também com a música nacional ou mexicana em alto volume, e com os cobradores que arriscam a vida gritando o itinerário com a porta aberta, e saltando do ônibus em movimento para auxiliarem os passageiros.


Apesar de tudo, o que vi foi um tipo de caos organizado, onde a dificuldade do dia a dia só é exequível através do respeito que procuram ter uns com os outros; e de uma noção de direitos e deveres que tanto faz falta no Brasil. Assentos feitos para comportarem 3 crianças comportam frequentemente 3 adultos, e o limite do espaço físico de cada um dá lugar a uma aceitação natural ao toque da pele. Senta-se uma jovem bonita ao lado de um homem, e não tem pudor ao pressiona-lo pelo balanço do ônibus, de tal modo que em nosso país, o contrário seria suspeito como assédio. Porque assim é o cotidiano. Vi pessoas que se ajudam, que não hesitam em informar quem precisa, e que colaboraram em tornar minha visita a melhor que já fizera a um país estrangeiro.


San Marcos é uma cidade bem menor que Quetzaltenango; se não me engano, o percurso demorou uma hora, e lá na rodoviária peguei outro ônibus para a localidade de San Pablo, onde tomaria uma van para seguir até perto da entrada do parque onde fica a cachoeira. Como a demanda por transporte público é maciça, a oferta também é; por isso se espera muito pouco por cada condução; diferente daqui onde cada vez mais pessoas têm carro, e a demanda por ônibus diminui. Um grande problema que tive foi de me locomover com a mochila e a mala, pois não retornaria à cidade anterior naquele dia. Depois da cachoeira, iria para o México, passar um dia na cidade de Tapachula e ver uma certa ruína.


Ao descer em San Pablo, praticamente me 'carregaram' para a van, e puseram minha mala na parte superior, com outros pertences de passageiros. Nunca na vida havia visto aquilo: Gente pendurada no lado direito, outros atrás, e dentro um aperto maior que no ônibus. Pensava em como uma van poderia levar tantas pessoas, e correr aquele risco numa longa subida por estrada de chão. Até serviço de entrega de comida o cobrador fazia, parando numa barraquinha de cachorro quente, e levando mais acima a uma moradora que o tinha encomendado. No ponto final, em meio a um bairro rural a mais de 6000km de casa, me vi num dilema com aquela mala que de forma alguma poderia carregar para a cachoeira, pois se o caminho não umedecesse tudo o que levava, a chuva da tarde poderia fazê-lo. Olhei então a primeira casa que estava aberta, e fiz uma aposta no escuro, de pedir a um homem que me a guardasse por um momento, até o meu retorno. Sua família e os passantes estranharam a situação, logo notaram que eu era estrangeiro, e gentilmente me fizeram aquele favor.


Problema resolvido, andei o trecho restante e paguei um valor barato pela entrada do parque. Um caminho calçado ao lado de um vale profundo leva, primeiramente, a um lugar de águas termais, com entrada paga à parte por quem queira visitar, e em seguida a trilha continua, em subida até a cachoeira maior. É linda, quase indescritível. O rio, que nasce no Vulcão Tajumulco, desce aquele paredão gigante; e naquele momento se avolumava com a chuva, quase formando uma cabeça d'água. O guarda chuva durou só o suficiente para proteger a câmera durante as fotos, e depois se estropiou. Voltei ensopado, mas satisfeito até a casa onde confiavelmente guardaram meus pertences, e segui de van até Malacatán. A segunda chuva, mais forte, encharcou o cobrador de um modo que até deu pena, conforme saía e voltava do veículo ajudando passageiros. Sem comer desde manhã, por questão de tempo, continuei viagem para o México, onde me esperava a pior entrevista migratória da vida, e cujo desenrolar da história estimo que já não seria interessante ao leitor.