Ao longo de 82
artigos aqui expostos até hoje sobre vários lugares, manter uma
narrativa realmente catalogadora, neutra e isenta foi algo que sempre
se pretendeu. Descrever uma trilha segundo a cronologia da nossa
própria visita é apenas um jeito de informar ou prevenir quem tenha
interesse, para aquilo que de forma idêntica ou parecida encontrará.
Excessos acontecem. Se por um lado pecamos em apresentar certas
perspectivas pessoais para reforçar o aspecto emocionante de cada
atrativo, por outro, tentamos não cair no fosso da banalidade, como
relatos de trilha onde se detalha até o que cada um comeu, ou os
assuntos triviais discutidos durante o percurso. A despeito da
liberdade de quem escreve, seria de pouca utilidade para quem lê.
Entretanto, falar pela 1ª vez de algo tão distante do leste do
Paraná – foco deste blog – requer um pouco mais de licença à
impessoalidade. Será, pois, uma exceção.
Numa noite de
abril – primavera no hemisfério norte – ouvia a chuva bater na
janela do quarto de hotel onde estava. Com uma previsão do tempo
incerta, não seria estranha uma temperatura negativa na manhã
seguinte, no cume que pretendia havia anos. Era o centro, a parte
principal da viagem, e o clima poderia simplesmente estragar tudo.
Parecia arriscado acordar cedo demais e ir esperar um ônibus antes
do sol nascer, uma vez que mal conhecia Quetzaltenango; porém hoje
até creio que seja mais segura que Curitiba. O chão molhado e um
'céu de chumbo' faziam lembrar alguns insucessos que já tivera. O
ônibus para o bairro Llanos Del Pinal sai do Parque El Calvário, na
8ª Calle; passa por uma praça que é como um grande terminal, e
percorre boa distância em direção à zona sul, onde está a área
montanhosa. A passagem, como na maioria dos transportes da Guatemala,
é muito barata.
Quetzaltenango
é a 2ª maior cidade do país, tendo uma população do tamanho de
Presidente Prudente – SP. O Vulcão Santa María (3772m) é o 4º
mais alto da Guatemala, atrás do Tajumulco (4220m), Tacaná (4060m)
e Acatenango (3976m). Não são montanhas brancas com neve, ao estilo
"sorvetão", e sim uma recortada cordilheira verde que
pertence ao círculo de fogo do pacífico, e constitui a porção
mais elevada da América Central. Resultado de uma antiga erupção,
a parte do Santa María oposta à trilha sofreu um enorme
desmoronamento, e anos depois, uma nova cratera surgiu no lado
destruído, passando a ser chamada Vulcão Santiaguito. Ele é mais
baixo, porém fortemente ativo. O ponto final do ônibus que leva à base fica apenas a uma quadra das últimas casas do bairro –
como um "Borda Do Campo" em relação ao Morro Anhangava.
Apesar de não
ser tão turístico como os que circundam a capital, o Santa María é
bem frequentado por pessoas da região; e foi mais fácil conseguir
informações sobre ele com populares do que no escritório de
turismo no centro da cidade. A moça que me atendeu dissera não
saber como chegar à trilha de forma independente, então lhe prometi
descrever posteriormente minha ida, caso desse tudo certo. Em locais
assim, de qualquer região do mundo, a tendência é que enrolem o
turista pra que contrate passeios pagos; e talvez eu não tivesse dado a ela o benefício da dúvida se não fosse tão bonita.
Na estradinha
que precede a trilha do vulcão, tinha pela frente 4km de caminhada,
com um desnível de mais de 1200m, o mesmo do Monte Garuva, por
exemplo. O trajeto já iniciava nos 2500m de altitude, diferente de
algumas montanhas da região onde o ganho é maior. Minha experiência
acima dos 3000m, (anos antes em outro país) tinha sido horrível;
representando mais um problema que poderia me fazer desistir na
metade. Havia alguns dias que tomava vitamina b, recomendada para
suportar grandes altitudes, e foi uma decisão muito acertada. É
barata e funciona.
Chegando no
último campo antes de adentrar a floresta, a continuação é pelo
lado direito, e por toda a extensão, a trilha é bem aberta, sem
grandes obstáculos. Quando senti as primeiras gotas de uma garoa,
lembrei de certa notícia sobre três mortos por hipotermia no
Vulcão Acatenango, um tempo atrás. Mas ela não continuou; e outro
ânimo tive quando vi mais gente subindo a trilha. A floresta é em
maior parte de pinheiros altos, e o solo alterna entre trechos de
pedra e de terra úmida. Se chegasse a qualquer outro cume cheio de
gente e sem nenhuma vista, por causa das nuvens, sentiria até
arrependimento, mas não lá. Concluíra com êxito a subida, depois
de tanto tempo de expectativa, estava no topo do Santa María.
Somente ali senti uma pequena diferença ao respirar, por causa da
altitude.
Era um lugar
bem espaçoso, entre pedras grandes; e havia distintos grupos de
trilheiros. Um deles fazia orações numa das várias línguas
indígenas do país; e embora fossem cristãos, me surpreendeu que a
forma do seu louvor remetia às mesmas tradições e idiossincrasias
de um tempo remoto, onde adoravam outros deuses. A riqueza e a
variedade da cultura guatemalteca não ficam devendo em nada para
países muito maiores. Num grupo de americanos, pensando que eu fosse
nativo, um deles perguntou-me em espanhol se eu tinha esperança de
que as nuvens se abrissem um pouco, para que pudéssemos ver qualquer
coisa. Respondi que sim, pois para um dos lados estava clareando
bastante. Foi meio profético, porque em poucos minutos aconteceu o que
mais esperávamos. Na direção da cidade e também do Vulcão Santo
Tomás, o véu branco começou a se abrir e pudemos ver, senão todo o
desejado, um bom espaço de paisagens bonitas.
CATARATAS DE LA IGUALDAD
Ter um dia de
descanso para cada dia de trilha, numa viagem internacional, é um
luxo que nem todos podem se dar. Ter encaixado em tão pouco tempo no
roteiro o conhecido Vulcão Pacaya e o Lago Atitlán já havia sido
mentalmente cansativo. O próximo passo era ir ao encontro da
cachoeira mais alta da América Central (embora haja controvérsia
com o Salto Chilascó). Como ao lado dela às vezes se formam outros
fluxos, e também existe outra queda mais abaixo, o local é chamado
no plural, de Cataratas De La Igualtad. No cansaço do dia anterior,
não pude sair tão cedo, e fiz uma má economia indo a pé ao ponto
de ônibus para San Marcos, quando na verdade um táxi teria sido
providencial. Transporte por aplicativo, até aquele momento, só
existia na Cidade Da Guatemala.
Os ônibus lá
são um capítulo à parte. Modelos escolares americanos, com muitos
anos de uso, que em algumas linhas (não todas) são conduzidos na
velocidade máxima, com estrondosas buzinas de caminhão, fazem
manobras bruscas para pegarem passageiros vistos 'em cima da hora', e
levam gratuitamente muitos vendedores ambulantes. Estes por sua vez
anunciam toda sorte de produtos até a exaustão da voz, pois não
competem só com o som ambiente, mas também com a música nacional
ou mexicana em alto volume, e com os cobradores que arriscam a vida
gritando o itinerário com a porta aberta, e saltando do ônibus em
movimento para auxiliarem os passageiros.
Apesar de
tudo, o que vi foi um tipo de caos organizado, onde a dificuldade do
dia a dia só é exequível através do respeito que procuram ter uns
com os outros; e de uma noção de direitos e deveres que tanto faz
falta no Brasil. Assentos feitos para comportarem 3 crianças
comportam frequentemente 3 adultos, e o limite do espaço físico de
cada um dá lugar a uma aceitação natural ao toque da pele.
Senta-se uma jovem bonita ao lado de um homem, e não tem pudor ao
pressiona-lo pelo balanço do ônibus, de tal modo que em nosso país,
o contrário seria suspeito como assédio. Porque assim é o
cotidiano. Vi pessoas que se ajudam, que não hesitam em informar
quem precisa, e que colaboraram em tornar minha visita a melhor que
já fizera a um país estrangeiro.
San Marcos é
uma cidade bem menor que Quetzaltenango; se não me engano, o
percurso demorou uma hora, e lá na rodoviária peguei outro ônibus
para a localidade de San Pablo, onde tomaria uma van para seguir até
perto da entrada do parque onde fica a cachoeira. Como a demanda por
transporte público é maciça, a oferta também é; por isso se
espera muito pouco por cada condução; diferente daqui onde cada vez
mais pessoas têm carro, e a demanda por ônibus diminui. Um grande
problema que tive foi de me locomover com a mochila e a mala, pois
não retornaria à cidade anterior naquele dia. Depois da cachoeira,
iria para o México, passar um dia na cidade de Tapachula e ver uma
certa ruína.
Ao descer em
San Pablo, praticamente me 'carregaram' para a van, e puseram minha
mala na parte superior, com outros pertences de passageiros. Nunca na
vida havia visto aquilo: Gente pendurada no lado direito, outros
atrás, e dentro um aperto maior que no ônibus. Pensava em como uma
van poderia levar tantas pessoas, e correr aquele risco numa longa
subida por estrada de chão. Até serviço de entrega de comida o
cobrador fazia, parando numa barraquinha de cachorro quente, e
levando mais acima a uma moradora que o tinha encomendado. No ponto
final, em meio a um bairro rural a mais de 6000km de casa, me vi num
dilema com aquela mala que de forma alguma poderia carregar para a
cachoeira, pois se o caminho não umedecesse tudo o que levava, a
chuva da tarde poderia fazê-lo. Olhei então a primeira casa que
estava aberta, e fiz uma aposta no escuro, de pedir a um homem que me
a guardasse por um momento, até o meu retorno. Sua família e os
passantes estranharam a situação, logo notaram que eu era
estrangeiro, e gentilmente me fizeram aquele favor.
Problema
resolvido, andei o trecho restante e paguei um valor barato pela
entrada do parque. Um caminho calçado ao lado de um vale profundo
leva, primeiramente, a um lugar de águas termais, com entrada paga à
parte por quem queira visitar, e em seguida a trilha continua, em
subida até a cachoeira maior. É linda, quase indescritível. O rio,
que nasce no Vulcão Tajumulco, desce aquele paredão gigante; e
naquele momento se avolumava com a chuva, quase formando uma cabeça
d'água. O guarda chuva durou só o suficiente para proteger a câmera
durante as fotos, e depois se estropiou. Voltei ensopado, mas
satisfeito até a casa onde confiavelmente guardaram meus pertences,
e segui de van até Malacatán. A segunda chuva, mais forte,
encharcou o cobrador de um modo que até deu pena, conforme saía e
voltava do veículo ajudando passageiros. Sem comer desde manhã, por
questão de tempo, continuei viagem para o México, onde me esperava
a pior entrevista migratória da vida, e cujo desenrolar da história estimo que já não seria interessante ao leitor.
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