Fotos, vídeos e eventualmente os relatos e tracklogs de quase todas as trilhas, exploratórias ou não, que empreendemos no leste do PR - ou outras regiões, conforme possível. Enfoque oposto à indústria do turismo, e voltado ao interesse do usufrutuário dos atrativos naturais. Blog vinculado ao canal JEANDISANTI no Youtube.
No rico acervo
de mapas da Biblioteca Nacional, encontra-se um suposto projeto do
século XIX para a estrada de ferro da Serra Do Mar paranaense, um
tanto diferente de como a conhecemos hoje. Consta no campo da data
aproximada apenas "1880?", porém faz mais sentido que
tenha sido feito alguns anos antes.
Não lembra os
traços típicos de Nanquim de outros esboços no mesmo período,
como o do Barão De Teffé, onde inclusive a ferrovia figurava como
"projetada"; e sim lembra um desenho com canetas não tão
antigas, sobre uma tela de textura áspera.
Ampliar e
aumentar o contraste sobre algumas partes suas é algo que nos
possibilita jogar luz sobre uma meia dúzia de detalhes
interessantes, como de há muito quiséramos fazer com diversos mapas
de antanho, e será este apenas o primeiro deles.
O sistema
Fell, como aparece no cabeçalho, foi desenvolvido pelo engenheiro
britânico John Barraclough Fell para uso em ferrovias muito
inclinadas, e consistia na inclusão de um terceiro trilho, central,
que seria usado tanto para tração como para frenagem. Testado pela
primeira vez em 1863, foi implantado em algumas estradas de ferro
serranas pelo mundo, uma delas no estado do Rio De Janeiro. Ao longo
do tempo foi sendo substituído nesses lugares, em razão da
dificuldade da sua manutenção.
Na ferrovia
Curitiba – Paranaguá houve mudanças de trajeto tempo depois da
construção, restando por exemplo um antigo túnel que não se usa
mais. Então é difícil saber o que realmente coincidia do projeto
desse mapa com a obra de fato executada nos anos 1880.
Ferrovia e Caminho Do Itupava
Adiante da
Casa Do Ipiranga, o trajeto atual acompanha quase exatamente a
'ponta' do rio de mesmo nome, para fazer uma volta lá na frente,
enquanto no mapa essa curva seria cortada bem antes; aproveitando por
ser um sistema que permitiria maior inclinação. Nas imagens do Google
Earth, retrocedendo o mais possível, ainda não se vê no local do
suposto atalho nada além de floresta, como se estivesse intocado.
Porém na imagem aérea de 1980 sim, aparecem claramente sinais de
intervenção.
O traçado
segue sem cruzar em nenhum momento o rio Ipiranga; está
continuamente tão para dentro da margem direita que chega a
transpassar a 'Estrada' do Itupava. O que viria a ser construído
foi, no entanto, um caminho que cruza duas vezes esse rio.
Vê-se no mapa
mais 3 nomes de cursos d'água que até então imaginaria sem
batismo; num dos quais inclusive existe cachoeira. São estes nomes:
"Farinha Seca", "Itororó", e outro de leitura
mais duvidosa, que parece algo como "Guariacoco"(?)
A longa curva
no local que diz "Monte Christo" não existe, foi abreviada
por um túnel.
Ribeirão Do
Cadeado e Córrego da Barreira são duas outras denominações que
desconhecia, as quais correspondem respectivamente aos lados esquerdo
e direito da descida mais forte do Caminho Do Itupava.
Provavelmente
o "Rio Sabiacaba" é o que hoje chamamos Taquaral. E o
"Água Do Passo" pode ser algum outro afluente vindo do
Marumbi.
O mais curioso
é que esse projeto fazia a ferrovia seguir para o meio do Porto De
Cima, via Prainhas, com muito menos curvas do que hoje. Por ende, ela
perderia altitude de forma bem menos gradativa.
Seria esse
projeto autêntico? Qual sua data real? Quem foi seu autor?
"Duas
rochas gigantes, uma mais esférica e outra achatada, que seguram
entre si uma terceira, tanto menor, junto à qual jorra forte a água
de um rio sobre um poço de leve tom esverdeado. Arenoso, mas ainda
atrativo. E atrás da torrente, um espaço sombreado como uma gruta,
habitada ao menos por uma ave." Assim se esboça a primeira das
cachoeiras de um rio difícil de descrever, localizado em Paranaguá,
entre o Bairro Morro Inglês e a Colônia Santa Cruz. Esta, por sua
vez, foi a que lhe cedeu o nome.
Três são os
cursos d'água que, descendo da Serra Da Prata, unem-se para
forma-lo, sem que possamos asseverar qual deles é o principal, e
quais são os afluentes. Um morador mencionara outros nomes, mas como
não temos certeza de que se refere e estes, seguimos chamando apenas
como "Rio Santa Cruz Da Direita", ou Do Meio, ou Da
Esquerda, como fazem as demais pessoas que lá conhecêramos.
No rio da
direita existem duas cachoeiras – a mais de baixo que é o Poço
Das Andorinhas; uma outra mais acima, e ainda uma cascata menor, mais
adiante. No do meio também existe uma queda pequena; e no rio da
esquerda visitamos uma cachoeira cujo acesso mais fácil é pelo sul,
pela Colônia. A entrada por onde começou nossa investida é a
oposta, a do Morro Inglês. Temos notícia de mais uma queda d'água,
de médio porte, que ignoramos se pertence ao rio do meio ou o da
esquerda. Tudo ficará mais claro no mapa a seguir.
Semanas antes,
estivemos numa chácara buscando a trilha para certo lugar, cuja
entrada erramos e acabamos perdendo o dia. De volta à base, o
morador disse-nos que o caminho que deveríamos ter tomado cruzava o
Santa Cruz Da Direita bem à altura de uma queda d'água. Pela da
distância que descreveu, não podia ser a mesma que eu vira na
imagem de satélite tempos atrás, mas cachoeira é pra nós igual
dinheiro: não se recusa; então uma hora ou outra voltaríamos ali.
A ideia seria
tentar ambas no mesmo dia; se uma não valesse a pena, a outra sim. O
problema é que pra chegar na de baixo, aparentemente teríamos que
dar a volta e entrar pelo desconhecido acesso de baixo. A ida à
cascatinha de cima foi tranquila, bem como o morador contou; só que
ela era pequena, não uma queda direta, mas em degraus, que talvez
num tempo mais chuvoso até virem torrente única.
Cascatinha de cima do Santa Cruz da direita
De volta à
casa do início, ainda faltava andar até o carro, pois ele não
aguentara subir até ali. Se ao chegarmos na colônia, os moradores
não nos permitissem passar, nosso proveito do dia teria sido muito
pouco. Mas tínhamos uma carta na manga, um elemento novo que nos
facilitou o planejamento, e que mais vezes será citado aqui no blog,
pela grande utilidade.
Em 1980 o
governo do Paraná contratou um levantamento fotográfico aéreo do
estado inteiro, que embora fosse em preto e branco, tinha boa
precisão, com a mesma escala de cartas topográficas, tendo
inclusive embasado a elaboração ou atualização das existentes na
época. O governo de Santa Catarina, por exemplo, encomendou esse
tipo de serviço mais recentemente, e suas imagens são simplesmente
as mais nítidas que já vi com esse fim.
Usar as fotos
antigas do Google Earth é coisa bem comum em planejamento de
exploratórias, não só porque há mais possibilidade de descobrir
locais agora encobertos nas fotos atuais, como ainda para ver
estradas que já não existem, e que viraram trilha. Pena que,
retrocedendo nas fotos da Serra Do Mar, o mais distante que se chega
é o ano de 2001. Dispor de informações de 21 anos antes, através
do site do ITCG – onde estão guardados os arquivos de 1980 – é
uma oportunidade de comparar muitas coisas. Entre elas um antigo
caminho, desde as chácaras até a parte do rio que nos interessava,
sem ter que fazer volta de carro. Nessa direção, numa casa adiante
deram-nos informação de que a trilha ainda existia, embora bem mais
fechada, com risco 'aleatório' de estar repleta de carrapatos.
O senhor que
mora nessa outra casa também nos recebeu bem e contou ter descuidado
um único carrapato escondido em sua nuca, cuja picada teve graves
consequências, deixando-o no hospital. O período de incubação
para uma febre maculosa inexistiu em sua narrativa, razão pela qual
supusemos que padeceu de algo diferente. A sorte ajudou a que não
pegássemos nenhum naquele dia; talvez porque na minha ida anterior a
esse bairro, eu já tivesse "coletado" todos.
São 950m de
trilha desde o fim da estrada até o rio, passando rente à soturna
ruína de uma casa onde não imediatamente encontramos a continuidade
do caminho. A cachoeira se localiza à esquerda do ponto em que
chegamos no leito, e concluí que ela também não era a que foi
vista do satélite, pois estávamos mais abaixo. No topo dessa que
chamam Poço Das Andorinhas, não se achava jeito de descer; ficou
bastante difícil porque a lateral esquerda era de pedras muito
altas, e a direita tinha um capinzal que não nos deixaria ver onde
pisar.
Decidi que
voltaríamos à entrada da mesma trilha por onde chegamos, e
tentaríamos descer mais internamente, pela mesma margem. Foi a
decisão correta, só que descemos um tanto a mais e tivemos que
subir por dentro do rio até chegar na base da queda. Era uma
cachoeira diferente das outras; aquela água de cor verde clara, não
comparável ainda ao Rio Araraquara, mas também era interessante.
O som agudo de
uma ave que voava rápido para o fundo da gruta fez-nos entender o
nome do lugar. A andorinha não gostou da nossa presença. Mas antes
dela chegar, já tínhamos andado atrás da torrente e tiramos fotos.
Depois de bastante tempo, quis achar alternativa para não voltar
pelo mesmo trajeto, e sim por qualquer entrada mais curta para aquele
barranco.
Deixei meus
amigos um pouco mais no poço e fui 'batalhar' no mato até achar o
estreito vestígio da única passagem segura. Chamei-os, e subimos.
De fato cortava uma boa distância, e foi melhor descobri-lo na
volta, porque na ida seria o tipo de lugar perigoso para se
investigar de cima pra baixo.
Intuí mais ou
menos como seria uma próxima investida, buscando então a cachoeira
que faltava. Tanto ela, quanto o rio da esquerda e o do meio serão o
tema do artigo seguinte.
Num tempo em
que o único caminho pavimentado entre Curitiba e São Paulo era a
atual BR-476, passando por Tunas; e quando até mesmo a conquista do
Pico Paraná estava recente, a Serra Do Capivari foi um cafundó,
conhecido mal e mal através de mapas. Foram mais tarde construídas
a represa homônima, a rodovia BR-2, que viria a se chamar BR-116
como a conhecemos; e com isso aqueles morros viveriam uma fase de
extrativismo, cujas pedras retiradas deixaram marcas visíveis
atualmente. Parte da trilha do Mirim, inclusive, já foi uma estrada
utilizada nessa atividade. Até poucos anos ainda era uma serra menos
falada que hoje, ofuscada pela vizinha maior ao sul; mas que pela
facilidade de acesso (inclusive de ônibus), atrairia melhor as
atenções do montanhismo, sendo esse um esporte tão subserviente às
tendências.
Pela 1ª vez
no cume do Mirim, em 2015, pegamos um dia de céu totalmente aberto.
Melhor que o mar de floresta dos picos superiores – o Médio e o
Grande – o que mais nos encantava era certo morro redondo, de um
verde claro quase saído de uma pintura impressionista, contrastando
seus campos com a Serra Do Ibitiraquire, imponente ao fundo. Entre
pesquisa na internet e conversas que tive, soube que não havia
trilha aberta para ele, e se alguém mais pisou seu cume, além dos
três grupos de que tive notícia, ninguém mais divulgou. Todos 3
teriam investido desde o Mirim e o Médio; rota esta que me parecia
perigosa e difícil de imaginar. Capivari IV era como se chamava
aquela rara, e desde então desejada porção de terra e rochas que
tão poucos visitaram.
Estudando como
alcançá-lo um dia, poderia encarar a pirambeira do lado oposto do
Mirim e ir descendo em direção ao vale, para ver o que conseguia,
porém nunca levei jeito para o suicídio. Uma ida posterior ao Médio
poderia ter dado a pista da rota usada pelos pioneiros, se naquele
então eu já tivesse certa experiência. Ouvi de um conhecido o
palpite de que a estrada Manrique talvez fosse opção de um trajeto,
nos dias em que ele andava buscando a trilha alternativa para o Pico
Guaricana. Mas minha decisão baseou-se numa crista que reparei,
iniciada quase na própria BR-116, com aclive não tão forte, e que
alternava campos teoricamente propícios a um avanço mais rápido.
Somente a base
era de floresta pura; a subida não era contínua, e sim ligeiramente
recortada; cheia de pedras grandes, além de possíveis taquarais e
cipoais em cada pequena descida. Sentia aquilo como algo além de uma
ordem inconsequente da própria vontade, ou da curiosidade, mas como
um chamado; a primeira trilha exploratória séria, tão logo os
morros convencionais me deixaram de cumprir o papel do desconhecido.
Pegar um facão, chamar parceiros, sair a combater "moinhos de
vento" já era algo irrenunciável.
PRIMEIRA
INVESTIDA
Manhã de
04/06/2016, eu, um amigo recente e uma conhecida dele, à qual fui
apresentado naquele dia, desembarcamos diante de uma estradinha
interna, com portão aberto, onde fomos batendo palmas, torcendo para
que autorizassem nossa entrada, pois que de outra forma seria difícil
achar acesso paralelo. Quem ali nos recebeu admirou nossa intenção,
e nos deixou seguir até o fim da estrada, 600m adiante, onde
começaria realmente o esforço. Este ponto era cercado de floresta
alta ao redor, com uma casa de madeira do lado esquerdo, onde nem
reparamos se vivia alguém. Entramos na mata pelo lado direito,
subindo por onde dava, pulando troncos e desviando espinhos, num
lugar bem úmido.
Num eventual
bote de cobra, creio que teriam sido inúteis as finas perneiras que
então usava, presas por um velcro que teimava em soltar nos piores
momentos. Levava nas costas uma mochila pequena, estufada, feita para
qualquer coisa menos trilha. Uma touca de soldador é o que há de
melhor para proteger o cabelo comprido, como era o meu à época. As
luvas ainda eram as verdes de jardinagem, e não as de vaqueta como
agora. Usava óculos de EPI, com o plástico sem vergonha que toda
hora embaçava e causava a vontade de bater facão desprotegido. Hoje
recomendo o de tela, que é simplesmente perfeito. As cotoveleiras de
elástico mantenho até hoje, pois na ausência de manga comprida
(pelo calor) são de grande utilidade.
Andávamos na
lateral de um valezinho, com leve vestígio onde alguém já andou; e
este trecho ainda foi brando, até que saímos na mata à altura do
peito, que antecedia o início da crista coberta por campo. Vegetação
seca e fortemente emaranhada, típica dos Capivaris, alternada com
taquarais onde cheguei a passar abraçado com o chão, causou-nos um
enorme sacrifício. Inexistiam vestígios anteriores; o uso do facão
não rendia; cruzávamos trechos em que era como bater na borracha.
Meu amigo à certa distância usava meu segundo facão, melhorando a
trilha, e quando parávamos os três para tomar água, com o suor
escorrendo no rosto, sentíamo-nos um pouco assustados talvez pela
falta de costume; e ali respiramos um ar de desolação.
A amiga dele
tinha iniciativa, era valente, e em alguns trechos menos penosos
consentimos que usasse o facão, embora sem a mesma destreza, com
algum risco de escapar da sua mão. Alcançamos a crista de capim
baixo, galgando uma pedra com algum embaraço, e desde então a vista
revelou-se melhor. Era muito bonito; dentre todos, esse é o morro
mais próximo da Represa Do Capivari. Acima não se distinguia muita
coisa. Contornar uma pedra cercada de mato fechado seria o último
obstáculo do dia. Estava no limite, a energia acabando; mal
conseguia fechar a boca. Passado esse penedo alcançamos outro, que
seria nosso ponto final, no qual meus parceiros chegaram logo antes e
me esperaram subir devagar, num estado lastimoso.
Foram nada
menos que 7 horas de ida, 5 das quais, batendo facão quase
ininterruptamente. E tal foi a diferença, que nesse mesmo trecho, o
nosso retorno custou apenas 40 minutos. Voltar ali para tentar o
cume, em uma ou duas semanas, sem o impedimento daquela muralha de
mato parecia de bom augúrio; porém novas dificuldades estavam por
vir.
SEGUNDA
INVESTIDA
Um dia nublado
e mais frio foi quando novamente pisamos aquela estrada, sem ainda
ter dado tempo de sumirem os arranhões anteriores. Nossa amiga não
conseguira vir; estávamos só nós dois. Uma cãibra pela pressa foi
um mau sinal, antes mesmo do início da mata. Depois de cumprimentar
o morador na entrada, vimos gente na última casa, e se bem recordo,
ao passar por eles trocamos apenas um oi. Não calculamos o quanto
sua estranheza para conosco mudaria o rumo das coisas.
Fizemos tudo
como antes; e aquela mesma subida que nos durara 7h, nesta vez levou
apenas 1h30min. Andando além do conhecido, chegamos à primeira
descida antes de tornar a subir. Um 'minivale' de quase nenhuma
profundidade, mas coberto pelo mais denso cipó, tinha felizmente uma
curta passagem, visível só para quem se agache. Parecia o típico
rastro de animais, e só exigiu uso de facão na saída para o outro
lado, um pouco mais íngreme. Meu amigo quisera fazer outra rota mais
por baixo, à esquerda, e ali discordamos antes de passar por onde
propus. Ninguém é dono da verdade, mas casualmente a cada vez que
se repetiu a mesma renitência, provar-se-iam corretas minhas
escolhas.
Por algo que
se constata desde o Capivari Mirim e do Médio, coroamos nossa ida
com pelo menos um cume. Porque não subíamos uma simples crista, mas
sim rumo a um morro secundário, razoavelmente independente, que
antecede o IV. Hoje o chamamos de 'Adjacente', e sabemos que é tão
ou mais raro quanto o próprio IV, pois quem se aventurasse via
Capivari Mirim dificilmente esticaria a caminhada desde o lado oposto
para chegar ali. São 66m a menos, ainda assim 1460m são uma ótima
altitude; tanto que proporciona uma vista única daquela serra;
sobremaneira do trecho que ainda tínhamos por vencer. Dele não se
vê um IV tão esférico, e sim uma silhueta mais cônica e
desafiadora.
Montanhistas
da cidade costumam superestimar a ideia de que "em casa de
ferreiro o espeto é de pau". Pensam que os moradores da serra
não praticam um montanhismo tão ativo, como se só adentrassem a
floresta para caçar, retirar palmito ou cipó para artesanato, e
isso não é verdade. Basta conversar com as pessoas para saber que
muitos vão atrás desse mesmo lazer que buscamos, sem que o costume
do mato os entedie. Em muitos artigos de outros blogs, Brasil afora,
não custa esforço perceber que os autores omitiram as pistas
encontradas, como querendo presumir de uma falsa virgindade das suas
conquistas na natureza.
Adiante do cume do Adjacente ao IV, por
exemplo, deparamos vestígios consistentes na mata nebular, distintos
ao rastro de animais que vimos no cipoal. Esse tipo de vegetação
demora muito a se recuperar; de sorte que é possível andar numa
picada aberta há vários anos, pensando ser recente. Alguém passara
por ali, mas continuava sendo um cume raro.
Atrás das
pedras do topo e da mata sombreada, o trajeto volta a ser em campo;
descendo e contornando rochas que vez ou outra pedem um pouco de
cuidado; ora no meio da crista, ora margeando-a mais à esquerda.
Todo esse maciço, desde o início da crista, tem o lado direito
coberto de floresta, sendo a metade oposta quase inteira de campos,
arbustos e alguma rocha nua. Era chegado o ponto menos alto entre o
Adjacente e o IV; justamente outro valezinho, mais complicado e
repleto do pior cipó de todo o percurso. O esforço no facão
concentrou-se quase todo nesse momento; e conste que meu amigo outra
vez propôs desvio mais para baixo; o que lhe exigiu habilidade para
voltar, tão logo se deu por vencido.
O enleio
termina entre duas rochas, saindo em novo campo, mas desta vez perto
de uma face rochosa que encerraria nosso dia. Até pode ter sido
equivocado pensar que o desvio (pela esquerda) dela seria muito
perigoso, mas já tínhamos estourado nosso tempo. Tínhamos todo o
retorno pra fazer, contando com o último ônibus; além de uma
possibilidade de chuva antes de chegar ao ponto.
Em breve avaliação,
meu colega voltou do lado da rocha dizendo que era possível atingir
o cume ainda naquele dia, e que se eu dizia o contrário era só por
medo de que ele chegasse lá e eu não. Supôs que acabariam minhas
forças e que eu estava sendo altivo e egoísta. O futuro provaria o
tamanho da dificuldade daquele "pedacinho" restante. Se
tivéssemos optado por seguir, mesmo numa velocidade de corrida,
teríamos retornado no escuro e sob chuva. Mas quem nada sabe... nada
teme; e dessa forma ele conserva até hoje seu estulto parecer.
Nosso
conhecido, dono da casa de baixo, transparecera certa vontade de
participar daquela investida conosco, porquanto jamais havia estado
lá em cima. Deu-nos mais tarde a triste notícia de que o
proprietário dos fundos não queria mais ver nossa cara; e apenas
mandara avisar. Antes ignorávamos quem era dono do que, e não
tivemos o tato de consultar as pessoas que vimos na última casa, com
a mesma atenção que fizéramos na primeira. Mas segundo soubemos,
não eram de muitos amigos, e talvez de qualquer forma vetariam nossa
passagem. Trocamos contatos com o conhecido, vislumbrando uma forma
de persuadir com mais calma e mais conversa o outro morador; o que
futuramente resultou vão.
Não se
repetiria a sorte de conseguirmos carona naquele ponto de ônibus; e
como o Princesa Dos Campos só pegava passageiros no ponto da
passarela, marchamos mais 2km até lá. O escuro chegou meia hora
antes da chuva, e ela, meia hora antes do ônibus atrasado. Lá se
espera junto à estrada e não sob a cobertura; do contrário ele não
para. O saco plástico que levei tinha que proteger somente a mochila; e
diferente do colega, eu não tinha roupa impermeável. Foi a pior e
mais gelada dentre algumas esperas naquele local; e a consequência
veio logo no dia seguinte.
Começar do
zero uma nova tentativa, via Mirim, parecia a única chance de chegar
no IV; e tal diligência será contada em um parêntese, já que não
é conteúdo indispensável para o desenrolar da história.
Imaginar que
antes de as coisas começarem a dar certo, houve 3 outras idas
frustradas é algo para rir ou chorar. Num palpite correto, pensado
já no cume do Mirim, entendemos que a descida não iniciaria no
penhasco dele próprio, mas no valezinho entre ele e o Médio. Ali
passaram os primeiros 'não moradores' que atingiram um
dia o cume do IV. É uma descida inicialmente confortável, mais pela borda
direita; até chegar ao que parecia um buraco, mas na verdade era uma
'gruta'. A continuação era por dentro daquelas pedras juntas, coisa
inédita pra nós. Água escorria mais abaixo delas, sendo talvez
aquela nascente a principal do Rio Capoeira, das cachoeiras lá na
base.
Em mata mais
espaçada e complicada, agora num pedaço do Médio, passa-se o
'banheiro' de alguma anta, e pouco abaixo acaba qualquer rastro
antigo de gente. Novamente como um trio, alternamos o facão,
desconfiando ter desviado bastante para a esquerda. Encerramos a
atividade. Ninguém é obrigado a achar graça em tantos insucessos;
não sei como tiveram tanta paciência comigo, podendo ir a outro
morro que mais os agradasse. Cego por aquela quimera, lá voltei
outro domingo, apenas com a amiga corajosa a quem pouco conhecia. Um
enxame de abelhas, percebido a tempo, escorraçou-nos de lá num
episódio que poderia ter acabado muito mal.
Retornar
sozinho, em dia mais frio, foi o fundo do poço. Ao meu lado a famosa
cadelinha que aparece em todas as fotos de quem vai ao Mirim. A
coitadinha desconhecia aquele fim de mundo; e ao chegarmos no local
mais difícil, caiu uma inesperada chuva que a fez sofrer pelo frio.
Vi aquela carinha assustada, pensei no que estava fazendo, tomei
vergonha e desisti. Me surpreendeu que a chuva só tivesse atingido o
vale e não o cume do Mirim. Lá estava com seu grupo alguém que hoje
é minha amiga, mas que anedoticamente sempre menciona este dia em
que nos conhecemos, pelo medo que lhe causei, brotando do nada, sujo,
molhado, descabelado e de facão na mão.
Que restava
depois disso? Pensar noutra chácara que desse acesso à crista da
primeira tentativa? Outro plano demente que terminasse em desperdício
de tempo, energia, dinheiro e nervos? Ainda estava por conhecer a
Bocaina, a Serra Do Salto, o Pirizal, mais tantos outros, porém o IV
era como um direito que não possuía; e assim se manteve por 3 anos.
PENÚLTIMA
INVESTIDA
No inverno de
2019, já não trilhavam comigo aqueles dois amigos com quem tudo
começou. Ele, por divergências comigo. Conflitos de personalidade
que muitas discussões nos geraram, embora nunca tenhamos brigado
gravemente. E ela, principalmente por certo trauma noutra
exploratória onde corremos grande risco, ainda em 2016. Certo dia
subi o morro Ferreiro com um grupo, e no cume cada um tirava fotos e
comentava os lugares que identificava na paisagem. Vi um deles
apontar pra um lado e dizer a alguém "...lá é o Capivari IV".
Senti um aperto, uma tristeza como quem lembra de um amor perdido.
Já
em casa, procurei entre muitos contatos telefônicos o morador que
nos atendera, mas não só tinha esquecido seu nome, como ainda
poderia ter apagado o número por engano. Voltava a olhar a tela,
pensava bastante, fazia força pra lembrar, e nada... No 3º dia, de
surpresa me veio à mente o nome, e na mesma hora achei o número.
Felizmente ele usava WhatsApp.
Além de
manter sua vontade de subir o morro, ainda me contou que o dono do
terreno dos fundos havia se mudado; e este foi o ensejo para
marcarmos a data de uma nova tentativa. Convidei uma amiga, e foi o
pai dela quem lá nos levou, em 18/08. A antiga trilha havia virado
em nada, ao cabo dos 3 anos, porém nosso conhecido se antecipara, e
abrira uma nova picada quase até o começo da crista, em percurso
mais pela direita. Guiou-nos essa vez, manejando sua foice cujo
rendimento era praticamente o dobro do facão. Apesar do entusiasmo
pela nostalgia de estar ali novamente, senti certa fraqueza além do
normal, a ponto de tirar as perneiras velhas que me pressionavam o
andar, pouco importando que disso resultasse uma roleta russa entre
as cobras.
Desde a
crista, pouco tive que orienta-lo, porque até o 1º cipoal o caminho
era só um. Chegando nele, vi que desaparecera o vestígio de
animais, restando pois o sofrido obstáculo que nos custaria caro em
tempo e suor. Além de não ter prática com a foice, e também por
ser dia quente, minha astenia tornou-me quase inofensivo ao matagal;
o que foi vergonhoso, pois quem nos levava teve de fazer quase tudo
sozinho. Descansamos no cume do Adjacente e fomos pouco além dele,
até a 2ª mata ruim. Já sabia que pelo tempo passado, talvez fosse
necessária mais uma investida, essa sim crucial, de tudo ou nada.
Daquele ponto partimos, e aprazamos a 'batalha final' pro dia 15/09.
Quando um
burocrata inútil, que nunca usou ônibus na vida, define que seja
proibido passageiros viajarem em pé no país, mesmo no último horário de
uma linha, é porque não faz ideia de como seja ficar numa beira de
estrada à noite com uma mulher, temendo cada transeunte que em silêncio brota e
some no escuro. Novamente o pai da minha amiga teve que ir
ao Capivari, então pra nos buscar.
O problema ia além de um ônibus
lotado que não pudera nos pegar, mas sim de um novo contrato da ANTT
com as transportadoras, não mais prevendo sessões estaduais nas
linhas interestaduais como a que atende aquela localidade. Ou seja,
se poltronas livres houvesse, teríamos que pagar a passagem inteira
desde Rio Turvo – última sessão ainda no vizinho estado. Era um
problema a resolver na próxima ida; pior ainda para os habitantes,
que viram o preço saltar de quase R$18 para quase R$40.
O cúmulo foi
que, alegando desatualização no sistema paulista, a empresa dizia
não poder vender com antelação as passagens de volta, pois só
conseguiam imprimir na cidade de origem. Ou seja, teríamos que
arriscar na estrada novamente. Ainda bem, viríamos a encontrar outra
forma de voltar, sem depender daquele ônibus, porém fiz reclamação
na ANTT explicando todo o caso. Atirei no que vi e acertei no que não
vi, porque embora não se pudesse punir a empresa pelo sobredito,
constatou-se que o destino Rio Turvo estava irregular. Deveriam
cobrar até Cajati, o que não imaginávamos. Veio no e-mail de volta
a informação de que a empresa foi autuada, e pelo que calculei,
uma multa alto valor.
Vale dizer que
também existiria a opção do ônibus urbano da Viação Castelo,
caso seu primeiro horário de ida e seu último de volta não fossem
tão cedo.
INVESTIDA
FINAL
Depois de toda
a ajuda que nos deu, já considerávamos não como conhecido, mas
como amigo o morador da primeira casa. Quando nos contou que havia
caído do caminhão e que não estava bom do joelho, não lamentei
pela falta que faria no trabalho restante na mata, mas sim por ser
uma pena ele não chegar conosco ao cume do IV. Comigo também estava
outra amiga, a mesma que me ajudara na cachoeira 8 do Itararé e na 4 do Fortuna. Por mais que elas me considerem, desconfiei que no fundo
temeram eu não ter toda a capacidade para realizar nosso sucesso sem
a parceria dele. Não me ofendi de forma alguma. Mas sem perneiras
desde o início, levando mais líquido, caldo de cana congelado, gel
energético e chocolate; além de uma enorme motivação, sabia que
daria conta.
Ambas
disciplinadas, atentas, em condição física até melhor que a
minha, corresponderam a expectativa de chegarmos num determinado
tempo ao Adjacente, e em seguida ao último cipoal. Passava o
emaranhado abrindo apenas com as luvas, e não notei que, por não
trazer as dela, a parceira atrás de mim deveria ter sido a terceira
a subir, em vez de segunda. Diante da face rochosa de 3 anos atrás,
encontramos chão para galgar pela esquerda, tombando capim alto nas
coxas, cansativamente sob o calor. Avisei-as: Desde aqui é terreno
que nunca pisei. No último campo, ora andávamos pouco à esquerda
da crista, ora no meio dela. Foi então que, dentro do planejado para administrar energia, pedi a uma delas que por favor tomasse a
frente apenas por uns 50 ou 60 metros, o que muito me ajudou.
Retomando a
frente, chegamos diante da entrada da floresta final, a que divide ao
meio o cume do IV. Se naquele 'capacete verde' houvesse mata nebular,
nós avançaríamos; mas se fosse um taquaral terrível com cipós ou
penhascos, estaria ali a única chance de um fracasso definitivo.
Cruzando poucos metros de emaranhado, a mata ficou espaçada, e senti
nosso objetivo cada vez mais perto. Com ou sem vestígio, subia e
procurava na direção certa a luz indicando a saída da floresta,
até que ela apareceu. Descortinaram-se os outros Capivaris, a
represa, um vão de vista para Guaraqueçaba, e o sol.
Havíamos
conseguido; foi muito intenso. 4H20min no total; 1526m de altitude.
Com zoom vimos pessoas junto à caixa de cume do Mirim, não sei se
nos perceberam. Andamos pelo topo, entre rocha e arbustos, sendo que
a vista mais bonita se tem à esquerda de quem chega. Só naquelas
pedras se observa o sul, o Ibitiraquire; um ângulo pouco diferente
de quem olha dos demais. Na direção de onde viemos também se vê
robusto o Adjacente e mais duas porções que parecem falsos cumes.
De volta à base, demos a notícia do nosso sucesso; eu sem força
nem para mostrar as fotos. Entendo que não foram 3 anos de atraso,
aconteceu tudo como tinha que ser, na hora certa
Ao longo de 82
artigos aqui expostos até hoje sobre vários lugares, manter uma
narrativa realmente catalogadora, neutra e isenta foi algo que sempre
se pretendeu. Descrever uma trilha segundo a cronologia da nossa
própria visita é apenas um jeito de informar ou prevenir quem tenha
interesse, para aquilo que de forma idêntica ou parecida encontrará.
Excessos acontecem. Se por um lado pecamos em apresentar certas
perspectivas pessoais para reforçar o aspecto emocionante de cada
atrativo, por outro, tentamos não cair no fosso da banalidade, como
relatos de trilha onde se detalha até o que cada um comeu, ou os
assuntos triviais discutidos durante o percurso. A despeito da
liberdade de quem escreve, seria de pouca utilidade para quem lê.
Entretanto, falar pela 1ª vez de algo tão distante do leste do
Paraná – foco deste blog – requer um pouco mais de licença à
impessoalidade. Será, pois, uma exceção.
Numa noite de
abril – primavera no hemisfério norte – ouvia a chuva bater na
janela do quarto de hotel onde estava. Com uma previsão do tempo
incerta, não seria estranha uma temperatura negativa na manhã
seguinte, no cume que pretendia havia anos. Era o centro, a parte
principal da viagem, e o clima poderia simplesmente estragar tudo.
Parecia arriscado acordar cedo demais e ir esperar um ônibus antes
do sol nascer, uma vez que mal conhecia Quetzaltenango; porém hoje
até creio que seja mais segura que Curitiba. O chão molhado e um
'céu de chumbo' faziam lembrar alguns insucessos que já tivera. O
ônibus para o bairro Llanos Del Pinal sai do Parque El Calvário, na
8ª Calle; passa por uma praça que é como um grande terminal, e
percorre boa distância em direção à zona sul, onde está a área
montanhosa. A passagem, como na maioria dos transportes da Guatemala,
é muito barata.
Quetzaltenango
é a 2ª maior cidade do país, tendo uma população do tamanho de
Presidente Prudente – SP. O Vulcão Santa María (3772m) é o 4º
mais alto da Guatemala, atrás do Tajumulco (4220m), Tacaná (4060m)
e Acatenango (3976m). Não são montanhas brancas com neve, ao estilo
"sorvetão", e sim uma recortada cordilheira verde que
pertence ao círculo de fogo do pacífico, e constitui a porção
mais elevada da América Central. Resultado de uma antiga erupção,
a parte do Santa María oposta à trilha sofreu um enorme
desmoronamento, e anos depois, uma nova cratera surgiu no lado
destruído, passando a ser chamada Vulcão Santiaguito. Ele é mais
baixo, porém fortemente ativo. O ponto final do ônibus que leva à base fica apenas a uma quadra das últimas casas do bairro –
como um "Borda Do Campo" em relação ao Morro Anhangava.
Apesar de não
ser tão turístico como os que circundam a capital, o Santa María é
bem frequentado por pessoas da região; e foi mais fácil conseguir
informações sobre ele com populares do que no escritório de
turismo no centro da cidade. A moça que me atendeu dissera não
saber como chegar à trilha de forma independente, então lhe prometi
descrever posteriormente minha ida, caso desse tudo certo. Em locais
assim, de qualquer região do mundo, a tendência é que enrolem o
turista pra que contrate passeios pagos; e talvez eu não tivesse dado a ela o benefício da dúvida se não fosse tão bonita.
Na estradinha
que precede a trilha do vulcão, tinha pela frente 4km de caminhada,
com um desnível de mais de 1200m, o mesmo do Monte Garuva, por
exemplo. O trajeto já iniciava nos 2500m de altitude, diferente de
algumas montanhas da região onde o ganho é maior. Minha experiência
acima dos 3000m, (anos antes em outro país) tinha sido horrível;
representando mais um problema que poderia me fazer desistir na
metade. Havia alguns dias que tomava vitamina b, recomendada para
suportar grandes altitudes, e foi uma decisão muito acertada. É
barata e funciona.
Chegando no
último campo antes de adentrar a floresta, a continuação é pelo
lado direito, e por toda a extensão, a trilha é bem aberta, sem
grandes obstáculos. Quando senti as primeiras gotas de uma garoa,
lembrei de certa notícia sobre três mortos por hipotermia no
Vulcão Acatenango, um tempo atrás. Mas ela não continuou; e outro
ânimo tive quando vi mais gente subindo a trilha. A floresta é em
maior parte de pinheiros altos, e o solo alterna entre trechos de
pedra e de terra úmida. Se chegasse a qualquer outro cume cheio de
gente e sem nenhuma vista, por causa das nuvens, sentiria até
arrependimento, mas não lá. Concluíra com êxito a subida, depois
de tanto tempo de expectativa, estava no topo do Santa María.
Somente ali senti uma pequena diferença ao respirar, por causa da
altitude.
Era um lugar
bem espaçoso, entre pedras grandes; e havia distintos grupos de
trilheiros. Um deles fazia orações numa das várias línguas
indígenas do país; e embora fossem cristãos, me surpreendeu que a
forma do seu louvor remetia às mesmas tradições e idiossincrasias
de um tempo remoto, onde adoravam outros deuses. A riqueza e a
variedade da cultura guatemalteca não ficam devendo em nada para
países muito maiores. Num grupo de americanos, pensando que eu fosse
nativo, um deles perguntou-me em espanhol se eu tinha esperança de
que as nuvens se abrissem um pouco, para que pudéssemos ver qualquer
coisa. Respondi que sim, pois para um dos lados estava clareando
bastante. Foi meio profético, porque em poucos minutos aconteceu o que
mais esperávamos. Na direção da cidade e também do Vulcão Santo
Tomás, o véu branco começou a se abrir e pudemos ver, senão todo o
desejado, um bom espaço de paisagens bonitas.
CATARATAS DE LA IGUALDAD
Ter um dia de
descanso para cada dia de trilha, numa viagem internacional, é um
luxo que nem todos podem se dar. Ter encaixado em tão pouco tempo no
roteiro o conhecido Vulcão Pacaya e o Lago Atitlán já havia sido
mentalmente cansativo. O próximo passo era ir ao encontro da
cachoeira mais alta da América Central (embora haja controvérsia
com o Salto Chilascó). Como ao lado dela às vezes se formam outros
fluxos, e também existe outra queda mais abaixo, o local é chamado
no plural, de Cataratas De La Igualtad. No cansaço do dia anterior,
não pude sair tão cedo, e fiz uma má economia indo a pé ao ponto
de ônibus para San Marcos, quando na verdade um táxi teria sido
providencial. Transporte por aplicativo, até aquele momento, só
existia na Cidade Da Guatemala.
Os ônibus lá
são um capítulo à parte. Modelos escolares americanos, com muitos
anos de uso, que em algumas linhas (não todas) são conduzidos na
velocidade máxima, com estrondosas buzinas de caminhão, fazem
manobras bruscas para pegarem passageiros vistos 'em cima da hora', e
levam gratuitamente muitos vendedores ambulantes. Estes por sua vez
anunciam toda sorte de produtos até a exaustão da voz, pois não
competem só com o som ambiente, mas também com a música nacional
ou mexicana em alto volume, e com os cobradores que arriscam a vida
gritando o itinerário com a porta aberta, e saltando do ônibus em
movimento para auxiliarem os passageiros.
Apesar de
tudo, o que vi foi um tipo de caos organizado, onde a dificuldade do
dia a dia só é exequível através do respeito que procuram ter uns
com os outros; e de uma noção de direitos e deveres que tanto faz
falta no Brasil. Assentos feitos para comportarem 3 crianças
comportam frequentemente 3 adultos, e o limite do espaço físico de
cada um dá lugar a uma aceitação natural ao toque da pele.
Senta-se uma jovem bonita ao lado de um homem, e não tem pudor ao
pressiona-lo pelo balanço do ônibus, de tal modo que em nosso país,
o contrário seria suspeito como assédio. Porque assim é o
cotidiano. Vi pessoas que se ajudam, que não hesitam em informar
quem precisa, e que colaboraram em tornar minha visita a melhor que
já fizera a um país estrangeiro.
San Marcos é
uma cidade bem menor que Quetzaltenango; se não me engano, o
percurso demorou uma hora, e lá na rodoviária peguei outro ônibus
para a localidade de San Pablo, onde tomaria uma van para seguir até
perto da entrada do parque onde fica a cachoeira. Como a demanda por
transporte público é maciça, a oferta também é; por isso se
espera muito pouco por cada condução; diferente daqui onde cada vez
mais pessoas têm carro, e a demanda por ônibus diminui. Um grande
problema que tive foi de me locomover com a mochila e a mala, pois
não retornaria à cidade anterior naquele dia. Depois da cachoeira,
iria para o México, passar um dia na cidade de Tapachula e ver uma
certa ruína.
Ao descer em
San Pablo, praticamente me 'carregaram' para a van, e puseram minha
mala na parte superior, com outros pertences de passageiros. Nunca na
vida havia visto aquilo: Gente pendurada no lado direito, outros
atrás, e dentro um aperto maior que no ônibus. Pensava em como uma
van poderia levar tantas pessoas, e correr aquele risco numa longa
subida por estrada de chão. Até serviço de entrega de comida o
cobrador fazia, parando numa barraquinha de cachorro quente, e
levando mais acima a uma moradora que o tinha encomendado. No ponto
final, em meio a um bairro rural a mais de 6000km de casa, me vi num
dilema com aquela mala que de forma alguma poderia carregar para a
cachoeira, pois se o caminho não umedecesse tudo o que levava, a
chuva da tarde poderia fazê-lo. Olhei então a primeira casa que
estava aberta, e fiz uma aposta no escuro, de pedir a um homem que me
a guardasse por um momento, até o meu retorno. Sua família e os
passantes estranharam a situação, logo notaram que eu era
estrangeiro, e gentilmente me fizeram aquele favor.
Problema
resolvido, andei o trecho restante e paguei um valor barato pela
entrada do parque. Um caminho calçado ao lado de um vale profundo
leva, primeiramente, a um lugar de águas termais, com entrada paga à
parte por quem queira visitar, e em seguida a trilha continua, em
subida até a cachoeira maior. É linda, quase indescritível. O rio,
que nasce no Vulcão Tajumulco, desce aquele paredão gigante; e
naquele momento se avolumava com a chuva, quase formando uma cabeça
d'água. O guarda chuva durou só o suficiente para proteger a câmera
durante as fotos, e depois se estropiou. Voltei ensopado, mas
satisfeito até a casa onde confiavelmente guardaram meus pertences,
e segui de van até Malacatán. A segunda chuva, mais forte,
encharcou o cobrador de um modo que até deu pena, conforme saía e
voltava do veículo ajudando passageiros. Sem comer desde manhã, por
questão de tempo, continuei viagem para o México, onde me esperava
a pior entrevista migratória da vida, e cujo desenrolar da história estimo que já não seria interessante ao leitor.